Abstract: Nos estados democráticos, a vigilância em massa é tipicamente associada ao totalitarismo. As práticas de vigilância mais limitadas no seu âmbito são criticadas pelo seu potencial para minar os direitos e liberdades democráticos e o funcionamento das democracias representativas. Apesar disso, os cidadãos que vivem em sistemas políticos classificados como democráticos estão cada vez mais sujeitos a práticas de vigilância, tanto por parte das empresas como dos governos. Este artigo apresenta os resultados de uma genealogia do discurso da digitalização da OCDE, desde os anos 70 até ao presente, para mostrar como os danos e os benefícios das práticas de vigilância têm sido problematizados. Mostra como práticas outrora consideradas inaceitáveis são cada vez mais retratadas como neutras, ou mesmo positivas. É identificada uma mudança do acordo geral sobre a incompatibilidade das práticas de vigilância com a democracia para uma maior aceitação dessas práticas quando rebaptizadas como ferramentas para promover a personalização, o crescimento económico ou a saúde pública. Esta transformação é significativa porque:

(1) mostra a instabilidade inerente das políticas ancoradas em conceitos aparentemente fixos ou evidentes como “bem-estar” ou “interesse público”;

(2) evidencia a fragilidade dos sistemas democráticos quando coisas consideradas prejudiciais ao seu funcionamento podem ser re-orientadas e subsequentemente permitidas; e

(3) destaca a contingência das (aparentemente inevitáveis) práticas de vigilância, abrindo assim um espaço para as desafiar.