Por onde passa, Durval de Moraes é obrigado a contar a mesma história. Nos tempos em que era apenas o goleiro Mão de Onça, do Juventus-SP, foi a última vítima da obra de arte mais perfeita de Pelé, segundo o próprio Atleta do Século 20 e a maioria dos 10 mil presentes na Rua Javari naquele 2 de agosto de 1959. O Rei do Futebol morreu na última quinta-feira, aos 82 anos.
O gol em que o Rei dá quatro chapéus e testa a bola antes de estufar a rede na goleada do Santos por 4 a 0 só tem registro fotográfico. Mas o filme não sai da cabeça do ex-goleiro.
— Não é porque foi em mim não, mas não vi mais bonito até hoje. Não dá para comparar com qualquer outro. Nem de Maradona, nem de Messi... Achei mais parecido o do Alex, quando jogava no Palmeiras (contra o São Paulo). Ele chapelou um marcador e depois o Rogério Ceni, mas não completou de cabeça e deu balão em menos gente... — afirmou Mão de Onça, em entrevista ao ge em 2010.
Pelé: a história do maior atleta do planeta
O ex-goleiro não esquece os detalhes do golaço do Rei. Aos 36 minutos do segundo tempo, o Santos já vencia por 3 a 0 quando Jair lançou Dorval pela direita. Na altura da meia-lua, ele centrou para Pelé, que vinha em velocidade. O primeiro a levar chapéu foi Julinho. Depois vieram Homero, Clóvis e, por último, Mão de Onça. Estava pronta a obra-prima com quatro chapéus e, segundo Mão de Onça, duas embaixadinhas de cabeça antes de testar para o fundo da rede, ao contrário da reconstituição do lance feita no filme "Pelé eterno".
— Antes da risca do meio-campo, o Pelé já saiu em disparada. Eu gritei para o Julinho: "Olha o Cão, atenção!". Eu chamava o Pelé de Cão... Pensei que o Julinho ia cortar de cabeça, mas o Pelé matou no peito, tirou a bola, já o encobriu... Depois foram os outros. Fiquei por último... Quando eu levantei, com a bola lá dentro, o Rei comemorando, aquela gritaria toda no estádio, o Clóvis estava debaixo do gol. Se jogou lá, tentando tirar a bola. Olhei para ele e disse: "Pô, como é que pode esse cara meter um gol assim, dessa maneira?" Ele me respondeu: "Esse aí é o diabo em forma de gente!". O Julinho ainda falou: "A bola estava no meu peito. Quando vi, sumiu!" — disse o ex-goleiro.
Segundo Mão de Onça, Pelé estava naquele dia visivelmente irritado com a perseguição da torcida do Juventus. Mas, após os gols, o estádio inteiro bateu palmas para o Rei. E um fato curioso aconteceu: enquanto discutiam sobre o gol, o ponta do Juventus, Rodrigues, que estava deslocado como lateral-esquerdo, voltou gritando para toda a defesa.
— Este é o gol mais bonito que já vi! Por que vocês estão tão bravos? Têm é que abraçar o Pelé!
— Então, vai lá você abraçar! — respondeu o goleiro, ainda inconformado com o lance genial.
Para piorar a situação, Mão de Onça estava todo sujo de lama. Havia uma poça na área por causa das chuvas daquela manhã. O arqueiro contava com ela como aliada para parar a bola...
— Naquela fração de segundo, pensei em mil e uma coisas. Ameaço que vou e não vou? Bola de poça em água não pula... Minha ansiedade foi senti-la na água. Mas não chegou. Ele a tirou antes e me deu o chapéu. Pelé pensava muito rápido. E fui para a água, com barro e tudo.
Com ou sem barro, Mão de Onça, único daquela defesa do Juventus ainda vivo, foi um dos que sofreram na mão do Rei. De cabeça, o goleiro, que começou a carreira com 15 anos, diz que sofreu oito gols do maior jogador do planeta.
Depois de começar no amador Primavera-SP, de Indaiatuba, Durval ingressou no antigo Clube Atlético Ituano — não é o Ituano de hoje. Após breve passagem por São Paulo e Atlético-MG, encontrou o seu porto seguro no Juventus. Querido lá, guardou também boas lembranças.
— Mas nosso time penou com o Santos. Dois anos depois daquele gol, teve um jogo na Rua Javari... O Pelé fez outra jogada impressionante. A partida estava 1 a 1. Empate com o Peixe era vitória. No segundo tempo, ele pegou uma bola na linha lateral do campo. Eu gritei: "Cerca!". O Pelé olhou para trás, para as arquibancadas. O Cássio, que tinha ido nele, em vez de tomar a bola, fez a mesma coisa. Levou um drible da vaca. O Pelé saiu driblando todo mundo para a outra lateral, na esquerda... Aí, voltou driblando para a direita, cruzando o campo. A cena era incrível, todo mundo atrás do Rei... Eu pensei: se ele fizer esse gol, paro de jogar! Aí, quando se aproximou da área, centrou na cabeça do Pagão, que fez 2 a 1.
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