Saúde Coronavírus

Estudo que testou vermífugo defendido pelo governo contra Covid-19 não viu melhora de sintomas

Em cinco dias de terapia, droga não superou placebo em efeito clínico primário; queda de carga viral foi único dado positivo secundário
Embalagem do medicamento vermífugo genérico nitazoxanida Foto: Caio Rocha / FramePhoto / Folhapress
Embalagem do medicamento vermífugo genérico nitazoxanida Foto: Caio Rocha / FramePhoto / Folhapress

SÃO PAULO - Os pesquisadores que realizaram o teste clínico no Brasil do vermífugo nitazoxanida para tratamento contra a Covid-19 publicaram nesta sexta-feira um artigo afirmando que o medicamento se mostrou clinicamente ineficaz e não superou placebo na melhora de sintomas de pacientes. Na segunda-feira (19) o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação havia anunciado que a droga tem eficácia comprovada.

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Na ocasião, o ministro Marcos Pontes, da Ciência, e os cientistas envolvidos no estudo não apresentaram os dados sobre o trabalho, alegando que um periódico acadêmico exigira sigilo antes da publicação. O trabalho foi publicado hoje, porém, em um portal de "pré-prints", ou seja, de estudos que não passaram ainda por revisão independente.

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Liderado pela pneumologista Patrícia Rocco, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, o trabalho contrasta com a descrição de eficácia clínica anunciada antes de sua divulgação.

"A droga antiparasítica nitazoxanida é amplamente disponível e exerce atividade antiviral in vitro. Contudo, não há evidência de seu impacto na infecção por Sars-CoV-2", diz o estudo no primeiro parágrafo. "Em pacientes com Covid-19 moderada, a resolução de sintomas não teve diferença entre grupos tratados com nitazoxanida ou placebo após 5 dias de terapia."

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O único efeito positivo verificado pelos pesquisadores é um desfecho secundário, a do vírus nos pacientes medida no quinto dia de tratamento. A posição secundária atribuída a esse critério significa que o estudo não foi desenhado para avaliar carga viral.

Em troca de e-mails com O GLOBO, a Rocco rebateu as críticas de que o trabalho é inadequado para indicação clínica do medicamento, e disse que não houve precipitação no anúncio.

"A revista científica para qual o trabalho foi submetido não trabalha com 'pre-print', todavia, devido a solicitação da imprensa para mais informações sobre o trabalho, foi solicitado ao editor uma autorização especial devido a pandemia para se abrir uma exceção de divulgação nos 'pre-print server'", escreveu.

Segundo ela, o o anúncio de eficácia feito no ministério foi correto, porque não falou de redução de sintomas. "O que foi anunciado é que houve redução da carga viral conforme o resultado evidenciado no próprio estudo. Segundo a literatura médica, a diminuição da carga viral pode diminuir a transmissão bem como o agravamento da doença", escreveu.

O trabalho ainda teve outros problemas que podem ter resultado em viés, como a exclusão de muitos dos pacientes recrutados. Dos mais de 1.500 propostos inicialmente, os cientistas usaram para efeito de comparação 475 pessoas. Mais complicado ainda, sete pacientes que apresentaram efeitos adversos foram excluídos da contagem sobre eficácia.

A divulgação do estudo nesta sexta-feira (23) só ocorreu após intensa pressão da comunidade acadêmica, que criticou o anúncio de eficácia do medicamento antes da divulgação de dados sobre o teste.

Desfecho secundário

Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a utilização de um critério de desfecho secundário como justificativa para defender o uso clínico de um medicamento não é adequado.

O microbiologista Alison Chaves, um dos cientistas que pediram a abertura dos dados, comparou o estudo divulgado hoje com o protocolo do ensaio clínico que havia sido registrado previamente no portal ClinicalTrials.gov, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH).

Esse registro indicava que os pesquisadores estavam seguindo 28 tipos diferentes de desfecho secundário. No estudo, porém, relatam ter medido apenas quatro: carga viral, testes diagnósticos de laboratório, biomarcadores de inflamação e taxa de hospitalização. Apenas um deles (carga viral) teve resultado positivo, e ainda com taxa de certeza relativamente baixa para trabalhos científicos (4,8% de margem de erro).

— É um estudo negativo que tentaram maquiar como dado positivo — afirmou Chaves. — Eles escolheram um dos 28 desfechos secundários para relatar e colocaram isso como se fosse algo positivo, quando o desfecho primário foi negativo. Nós sabemos que sempre que tem muitas comparações para fazer, é praticamente certo que ao menos uma vai resultar como estatisticamente significativa.

Questionada sobre ausência de menção aos critérios secundários examinados, mas não mencionados no estudo, Rocco não explicou porque não foram reportados. "Esse foi um estudo que mostrou dois dados positivos importantes a serem revelados", disse, referindo-se à carga viral e a redução de sintomas após sete dias, mas sem informar a comparação com os receptores de placebo.

Repercussão

Em artigo comentando o estudo, o infectologista Mauro Schechter, da UFRJ, e a microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência e colunista do GLOBO, afirmam que dados de voluntários retirados do ensaio clínico comprometem alegação de eficácia da droga.

"Os autores informam que excluíram do estudo, após a randomização, pacientes que apresentaram efeitos adversos graves, que precisaram de hospitalização ou que morreram. Ora, é como dizer que, excluindo todos os jogos que perdemos ou empatamos, tivemos 100% de vitórias", escrevem os cientistas.

Rocco afirma que os pacientes excluídos do estudo não comprometem o peso estatístico de suas conclusões. "O perfil de voluntários que podiam participar foi estabelecido segundo critérios científicos internacionais. É comum que se 'desqualifique' aqueles que não estão dentro do grupo estipulado", escreveu.

Márcio Sommer Bittencourt, cardiologista e epidemiologista do Hospital Universitário da USP, foi um dos médicos que se manifestaram sobre o estudo nas redes sociais.

Entre diversos problemas, ele afirma que uma falha metodológica impediu o estudo de ter sido "duplo-cego", ou seja, com pacientes e médicos incapazes de saber quem recebia placebo ou a droga. Esse é um padrão em grandes testes clínicos para evitar enviesamento, mas que teria falhado neste trabalho.

"Qualquer um que tenha usado nitazoxanida sabe que ela deixa a urina ficar verde. Como os autores 'cegaram' isso?", escreveu Bittencourt. "Conforme relatado no manuscrito, a cor da urina foi reportada como diferente. Portanto, o estudo não foi reamente duplo-cego."

Em sua resposta encaminhada ao GLOBO, a professora se diz confiante de que a metodologia do estudo foi adequada. Questionada sobre por que um artigo com conclusão negativa foi motivo de um anúncio de eficácia no ministério, Rocco diz que a afirmação negativa no resumo do artigo era um dado de contexto:

"O texto do abstract (resumo) utilizado na questão não diz respeito aos resultados da pesquisa realizada, apresentando uma situação de contexto que ensejou a necessidade de realizar este estudo, considerando o seu potencial apresentado em testes in vitro em células humanas", escreveu.