Opinião

E os juízes foram embora de Berlim

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

19 de janeiro de 2018, 17h24

Berlim existe em muitos imaginários judiciais. Em primeiro lugar, porque lá estava o Direito Positivo, seguro, escrito e válido universalmente. Em segundo lugar, porque os juízes que lá viviam não se submetiam a nenhuma expressão de poder. Eles eram uma força autônoma e distinta dos outros dois poderes. O juiz não estava em Paris — terra dos legisladores — e não se via em Roma — a cidade tornada império.

A referência da magistratura era Berlim: havia juízes lá!

No despedaçado Brasil do nosso tempo, os juízes abandonaram a alegoria do Direito seguro e da independência necessária para decidir.

Frederico, o Grande, vem ganhando a guerra!

Não são todos os juízes que podem ser apontados por qualquer trabalhador — não necessariamente um moleiro — e entronizados como salvaguardas de direitos através da expressão “há juízes em Berlim”.

Não estão mais lá!

O êxodo pode ser geracional, e a mudança de paradigmas talvez tenha contribuído para a abdução de tantos julgadores por Batman e Superman. O entupir-se de teorias e escritos concurseiros para se tornar magistrado possivelmente tenha tirado muito da compreensão humanista de sociedade e da epidérmica vivência do Nelson Rodrigues, necessária para decidir no mundo. Desconheceu-se “a vida como ela é” e embarcou-se na atuação tal e qual a Marvel nos ensinou.

O ativismo antidemocrático nos invadiu de tal maneira que se inventaram decisões e modas, e o Judiciário se arvorou não mais que repentinamente em legislador onipotente, criando normas que não existiam e fazendo opções que o legislador não fez.

E institucionalmente fomos além. Afastamos as regras seguras e imperativas do Direito objetivo — uma conquista da modernidade — e entronizamos o julgamento moral, o fundamento ético e a decisão pelo justo. Esquecemos, propositadamente, que não há fixidez na moral, certeza na ética ou ideia unívoca de justiça. Não são regras escritas e nem seguras.

Que moral? Que ética? Moral de que grupo? Ética para que extrato social? Justiça para quem? Todos esses conceitos estão na cabeça do iluminado juiz, que pode ser um obscuro medíocre.

Os juízes abandonaram Berlim quando substituíram o Direito pela sua moral particular e viram-se como profetas de um novo amanhecer. Alguns substituindo os códigos por uma Bíblia ou outro texto sagrado, o que é mais assustador ainda.

E, por este último motivo, muitos pensaram estar vivendo uma revolução francesa, mas Torquemada lhes aguardava com as vestes talares da santa inquisição, onde os fins justificam os meios e a maldade é cometida pelos bons propósitos.

Mas Berlim também significava independência! Mesmo contrariando Frederico, o Direito seria aplicado.

Fora da Berlim imaginária, ninguém contraria o senso comum, a mídia relevante e as redes sociais no nosso país, nesse nosso tempo.

Acabou-se a independência.

O aplauso que se espera, os desejados likes que se almejam e o comentário positivo que se aguarda oprimem mais que Frederico, que, afinal, desejava uma vista melhor do seu castelo.

Premidos pelo desejo de glória — por minutos de fama, likes e comentários —, os juízes vêm abandonando a sua própria racionalidade, deixando sua vocação institucional de lado e tomando de assalto o espaço da política, que é verdadeiramente democrático, e construindo uma nova modalidade de Estado antidemocrático: aquele que emana da sua própria toga!

Precisamos recuperar Berlim!

Há tantos juízes que não se sentem confortáveis com esse perfil hiperbólico de magistrado que surgiu de braços dados com a mídia; há tantos juízes assustados com esse avanço da toga sobre a democracia…

E há tantos de nós que acreditam num país mais justo, sem corrupção, sem punitivismo, sem leniência, sem heróis e sem autoritarismo… Há tantos de nós que desejam viver onde leis sejam respeitadas e os poderes sejam divididos sem gigantismos narcisistas… Somos tantos, embora silenciosos, que é o caso de repensarmos nossa própria omissão neste contexto histórico.

É preciso discutir livremente ainda que haja ferrenho patrulhamento ideológico, pois “palavra quando acesa não queima em vão. Deixa uma beleza posta em seu carvão”.

Precisamos voltar para Berlim!

*Título alterado às 19h36 do dia 19 de janeiro de 2018.

Autores

  • Brave

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!