quinta-feira, julho 31, 2014

Muçulmano ensina cristão a interpretar a Bíblia


Na primeira metade dos anos 80, um amigo meu namorava a filha de um pastor lá da igreja dele. De vez em quando me convidavam para o almoço dominical, pós-culto. Eu ficava meio ressabiado, não porque não gostasse da família, simpaticíssima - é que eles eram mineiros gastronomicamente militantes (apenas do sobrenome judeu Cohen) e o porco abundava à mesa: no arroz, no feijão, no tutu, na salada, nos legumes, nas bistecas, até a sobremesa continha gordura suína na fórmula da gelatina. Não poucas vezes eu tinha que passar à base de pão com ovo frito (em óleo de soja) e, para arrematar, uma laranja (quando havia feijoada).

O chefe da família costumava tirar sarro daquela minha mania “judaizante” de evitar carne de porco (em verdade, o rol completo é beeeem vasto). Aproveitava para ministrar seus conceitos teológicos todo-abrangentes. Eu apenas sorria, discreto, com uma serenidade quentaliana (pesquise o duelo poético português entre Castilho e Antero de Quental): o novo com fleuma de velho afrontado pelo velho com pretensões a novo.

Anos depois, meu colega, já namorando outra guria (aliás, que troca feliz!), estendeu-me a notícia de que a família de sua ex rogava a todos, independentemente da denominação religiosa, orações intercessórias pela saúde da irmã do tal pastor que estava internada em UTI: contraíra a infeliz uma cisticercose cerebral após ingerir suculentos e deliciosos medalhões suínos (não sei se ia molho de pera na receita). Na verdade, dada a frequência do consumo de carne de porco por aquele clã, talvez nem fosse culpa dos medalhões, especificamente; havia muitos e muitos outros cortes e receitas com o simpático animal no cardápio libertário dos ex-kohanim (digo, dos Cohen).

Pela graça divina, a cirurgia correu bem: deslocaram temporariamente um dos olhos da paciente e inseriram uma cânula pela órbita vazia até atingirem a área do cérebro com o verme recém-eclodido para, a seguir, congelarem-no com nitrogênio líquido. Ficou por ali mesmo o parasita cristalizado, era muito arriscado tentar a remoção. A mulher, não sei se ainda vive ou se apresentou sequelas. Nunca mais tive notícias.

Bom, outra hora lhe conto sobre as maravilhas vitalícias de se conviver com uma triquinose. Ou dos efeitos edificantes da histamina suína - ou mesmo do pig-power carcinogênico-hormonal dos porquinhos. Mas, vou logo adiantando, é só para quem aprecia emoções (e cenas) fortes.

(Marco Dourado, formado em Ciência da Computação pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados)

Correção: A cisticercose cerebral não é causada pela ingestão de carne suína, e sim de ovos de Taenia solium, que mais comumente são ingeridos por verduras mal lavadas ou água contaminada. A ingestão de carne suína mal passada pode transmitir a Teníase, que é parasitismo no intestino e que é diferente de cisticercose.